Silenciosos, os Awá se confundem com a mata
Audição acima dos padrões comuns permite ouvir som da devastação a quilômetros
ALDEIA JURITI, TERRA AWÁ, MARANHÃO - Bonitos, como são os povos Tupi, com os mesmos traços finos, a pele morena, cabelos fartos e negros, é fácil reconhecer, ao olhar, os Awá, que são parte da gente brasileira. O choque é a barreira da língua. O idioma que falam na Aldeia Juriti soa completamente distante de tudo que é familiar. E poucos falam algum português.
Não estamos preparados no Brasil para encontrar em outros brasileiros a barreira da língua. Causa uma sensação estranha de queda de um dos mitos. Sabemos que há outros idiomas, os especialistas dizem que são 180. Mesmo assim, a barreira, quando aparece, desconcerta.
A maioria dos índios já fala português, mas fomos para uma tribo que no conceito da Funai é de “índio isolado ou recém- contatado”.
Desde a manhã que chegamos na casa da Funai, no Juriti, eles apareciam, vindos de sua aldeia, apenas nos olhavam e retribuíam os sorrisos. Chegavam em grupos. Às vezes, crianças. Depois, dois velhos: Karamatxa’á — que só foi contatado em 1997, quando apareceu perdido e desorientado, numa fazenda — e Mutuhurum entraram na sala da casa da Funai e, sentados no banco da mesa, nos olharam em silêncio por um longo tempo. Tínhamos sido advertidos a não ir à aldeia sem o convite deles. No fim da tarde, algumas mulheres vieram, sentaram-se nos bancos que contornam uma árvore e me olharam fixamente. Saí da varanda e me sentei perto delas em silêncio. Elas, imediatamente, foram embora com seus filhos. A barreira parecia intransponível.
Por isso, foi com um certo alívio que ouvi à noite, de um jovem, a primeira frase em português, apesar do forte sotaque:
— Eu sou Awá, eu sou índio mesmo.
Eu lavava louça na pia da cozinha do posto, quando ele se aproximou com crianças.
— Sim, sei que você é índio mesmo, mas há outros índios.
— Índio não vende madeira. Índio defende mata.
— Qual o seu nome?
— Jui’í ( pronuncia-se iuii.)
— O que quer dizer?
— Pau no mato.
Perguntei os nomes das outras crianças e o significado. A resposta era sempre “pau no mato”. É que eles põem nas crianças nomes de árvores da floresta. Miminiawá, uma menina de 8 anos, tem o peso de carregar o nome dado em guajá para maçaranduba, uma das árvores mais cobiçadas pelos madeireiros.
Em 1979, os primeiros contatos
Os Awá foram chamados de “os índios invisíveis”. Fugiram de nós por quase 500 anos, desenvolvendo uma tecnologia sofisticada de ver sem ser visto e de sobreviver com o que a floresta pode dar. São caçadores e coletores. Um dos últimos povos assim. Evitaram o máximo que puderam o momento em que estão agora. Com acuidade auditiva acima de qualquer padrão humano, ouvem sons a quilômetros de distância. Movem-se flexíveis e silenciosos na mata, sobem nas enormes árvores amazônicas em segundos, como se escorregassem para cima, com a ajuda apenas de um círculo de cipó nos pés. Seus adornos são braceletes e cocares pequenos de penas de tucano, as iakãtá, e um pequeno laço amarrado ao prepúcio. Assim se sentem vestidos. As mulheres usam uma saia de tucum. Andar com eles na floresta é uma experiência forte, de admiração da agilidade dos movimentos dos corpos com músculos definidos. E a inusitada sensação de ter voltado no tempo.
Em 1979, foram feitos os primeiros contatos, tendo como resultado a tragédia de sempre: morte em grande escala, por doença. Os que ficaram foram levados para aldeias. Visitamos a mais isolada, a do Juriti, onde vivem os que têm menos contato.
Há mais duas aldeias na Terra Indígena Caru: Awá e Tiracambu. E uma quarta, de nome Cocal, na TI Alto Turiaçu. Nessas outras terras vivem também índios Ka’apor e Guajajaras.
Mesmo espalhados por quatro pontos, ainda há indivíduos da mesma etnia fugindo. Há tempos vêm sendo achados vestígios deles nas terras Caru e Arariboia. Numa expedição que terminou em julho foram seguidas essas pistas.
— Foram encontrados vestígios irrefutáveis da presença de isolados em dois pontos nas terras Arariboia e Caru. Não há dúvida de que são Awá. A política não é forçar o contato, mas atuar só quando estão em risco, e os Awá estão em extremo perigo, ameaçados de morte pela extração de madeira — diz Carlos Travassos, coordenador de Índios Isolados e de Recém-Contatados da Funai, um jovem de 33 anos, que se dispõe para a luta pelos índios com a paixão que o pai, ex-presidente da UNE Luís Travassos, exibia nos comícios de 68 contra a ditadura militar.
A chegada à aldeia tinha sido uma epopeia. Saímos de Brasília quinta-feira de manhã e chegamos no sábado. O longo caminho ficou maior pelos obstáculos da estrada de terra numa parte do caminho, que piorava no trecho final, no qual não podíamos nos aventurar à noite.
No primeiro dia, tínhamos ficado em São Luís, onde gastamos a tarde para comprar o que precisaríamos. Alguns ficariam uma semana, mas Sebastião Salgado e Jacques Barthelemy, seu assistente, ficariam três. A compra tinha que ser detalhada e cuidadosa. Qualquer esquecimento não poderia ser reparado. Felizmente, Sebastião assumiu o comando no supermercado com orientações precisas.
No segundo dia fomos vencendo a distância de todas as cidades da estrada asfaltada e superando o trecho de chão até uma base da Funai construída recentemente no alto de uma colina, já na Terra Indígena Awá. É um galpão onde se prepara a estratégia de defesa da terra e da floresta. Lá dormimos nas redes e, na manhã seguinte, fizemos o último e mais difícil trecho. Eram inacreditáveis 18 quilômetros. As Picapes dançavam e agarravam na estrada ainda encharcada pela temporada de chuvas que acabara de chegar ao fim. Os carros ameaçavam capotar. Parávamos para os homens, com a enxada, aplainarem um pouco o terreno e seguirmos adiante. Depois, uma caminhada de uma hora pela floresta. Tudo superado, chegamos. Já era o fim da manhã do terceiro dia.
Este é o momento decisivo para os Awá e para o que resta de Amazônia no Maranhão. Demarcada, homologada, registrada e com todas as contestações judiciais julgadas improcedentes, a terra Awá terá agora a “desintrusão”: retirada dos não índios. Nesse momento é que os grileiros e madeireiros atacam com mais força, como se fosse um fim de festa, uma queima de estoques. Esse ataque está abrindo feridas na floresta, e 30% da mata já foi abatida. Em todas as conversas eles passaram a mesma mensagem:
— Os madeireiros estão aqui. Estamos ouvindo o ronco dos tratores agora, estão derrubando a floresta.
Eles insistiam em tom aflito que ouviam — o que nossos ouvidos nem desconfiavam — e apontavam para várias direções; a sensação era de estar encurralado pelos madeireiros. Os dias seguintes mostrariam que não era apenas uma sensação.